terça-feira, 14 de agosto de 2018

Afinal, em que ponto a nossa cultura se trumbicou?

É visível o baixo nível dos atuais pré-candidatos à presidência, bem como a falta de renovação dessas lideranças. A sensação é de desalento. O país parece incapaz de produzir gente de valor, o que aponta para uma certa constatação que está bem na cara, mas que poucos se atrevem a enunciar: o baixo nível geral de nossos políticos é apenas um sintoma da morte de nossa cultura.
Mas afinal, uma cultura pode morrer?

Pode, sim. Mas também pode renascer, pois o país não morre. No momento atual, contudo, quem tem noção de cultura e de tempo fica com a nítida impressão de que nós já fomos bem melhores. Não todos, evidentemente. Não é fácil captar o momento em que a cultura fenece, pois como já foi dito por alguém, a inteligência, ao contrário de dinheiro e saúde, quanto mais a perdemos menos damos por sua falta, pois sem ela ficamos incapazes de avaliar nossa própria mediocridade. No fim achamos tudo normal. Mas certos aspectos da cultura são mais impactantes e atingem nosso emocional, e esses são mais fáceis de reparar. Qualquer um que visite um vídeo de uma canção antiga ou nem tão velha assim, encontrará nos comentários um rosário de lamentações, frisando que não se fazem mais músicas assim, e como decaímos após a invasão do funk e suas vulgaridades. Nossa música está morrendo! Mas é apenas um sintoma da morte de nossa cultura.

Isso é um contrassenso. Costumávamos achar que nossas limitações culturais se deviam à deficiência de nossa educação, e bem ou mal, todas as estatísticas mostram que o índice de alfabetização aumenta sem cessar, e os brasileiros passam cada vez mais tempo na escola. Mas isso é um julgamento de quantidade. Em termos de qualidade, estamos caindo desde muito tempo. Quem só viveu essa geração não sabe, quem é de outra geração mas não olha à sua volta também não sabe, mas quem conhece e acompanha a História sabe que já tivemos políticos bem melhores, bem como intelectuais, escritores e músicos bem superiores. Não há dúvida: nossa cultura está se acabando. E ante à consternação, surge a pergunta.

Afinal, em que ponto a nossa cultura se trumbicou?

Uma teoria muito conhecida afirma que foi tudo resultado de um desmonte deliberado. Produto da estratégia gramscista, urdida pelo intelectual italiano Antonio Gramsci, que preconizava a tomada do poder pela via da cultura. Segundo pregava, os intelectuais militantes deveriam ocupar todos os espaços difusores de cultura, e substituir os conteúdos ali existentes pela ideologia revolucionária. Não vou dizer nem sim nem não, há muitas páginas por aí tratando do assunto e denunciando o gramscismo como a causa de nosso declínio cultural. Mas procurando encontrar o nervo mais profundo que dá sensibilidade à criação, penso é a própria noção do superior e do inferior. Do bem feito e do mal feito, do bonito e do feio, do elaborado e do tosco.

É fora de questão, portanto, que a excelência da criação cultural deriva de uma apurada sensibilidade do superior. Não é crível que essa excelência seja atingida, ou mesmo procurada, em um ambiente onde o superior é odiado, a elite é desprezada e as massas são enaltecidas, a qualidade é preterida pela quantidade, a desigualdade é anátema e tudo se procura nivelar por baixo. Por influência ou não do pensador italiano, em algum momento esse ambiente se estabeleceu aqui. Por esse motivo os comentaristas do youtube lamentam que nossa música tenha sido devastado pelo funk das periferias: não se pode dizer que funk é um horror, pois quem o fizer estará sendo elitista, racista ou qualquer coisa politicamente incorreta. O que vale não é a qualidade, mas a suposta autenticidade popular. E pouco importa que o funk seja uma importação dos guetos norte-americanos, sem raízes em nossa cultura popular.

Os educadores afirmam com toda a seriedade que não se deve corrigir o aluno que fala errado, tipo "nóis pega o peixe", pois segundo afirmam, ele apenas tem um modo diferente de falar. Corrigi-lo, portanto, seria um gesto de prepotência de quem quer impor a norma culta usada pela elite. Até faz um certo sentido. Historicamente, proibir o uso do idioma tem sido um método de oprimir minorias e forçar sua assimilação. Mas se esquece que a fala errada dos ignorantes não constitui um dialeto completo. Um dialeto não obedece à norma culta, mas é coerente com sua própria norma. Entretanto, a fala errada que se escuta por aí nada mais é do que um conjunto de variações em torno de uma norma mal aprendida, que não obedecem a nenhuma regra identificável. Permitir que o aluno se expresse sem obedecer regra gramatical alguma só causará o empobrecimento da comunicação, com a perda de clareza, a multiplicação das ambiguidades, tornando mais difícil a expressão de qualquer conteúdo mais complexo, coisa vital para quem só conta com o estudo para melhorar de vida.

Há quem responsabilize o próprio patrono de nossa educação pela falência da educação no Brasil. Refiro-me a Paulo Freire, autor de um método acusado de ser mero pretexto para doutrinação de estudantes. Eu faço umas ressalvas. Não considero Paulo Freire um educador, mas um filósofo marxista, portanto seu suposto método não pode ser responsabilizado. Mas seu arrazoado fornece uma justificativa ideal para minimizar as deficiências da educação em geral, pois segundo afirma, o importante não é ministrar conhecimentos, mas "formar cidadãos", premissa vaga que cada um pode interpretar como quiser. Na verdade, nem haveria o que ensinar. Segundo Freire, é o professor que aprende com o aluno, e portanto seria uma prepotência de sua parte achar que o aluno tem que aprender com ele. Ora, como a cultura pode fluir daquele que a tem para aqueles que não a têm, se ambos interlocutores são colocados no mesmo patamar?

As teorias são várias, mas a constatação, no presente, é uma só: se os intelectuais marxistas tinham de fato um plano para chegar ao poder pela estratégia gramscista, esse plano falhou redondamente. A destruição da cultura não os levou ao poder: ao contrário, o que temos agora é um governo conservador e uma crescente onda conservadora difusa pela sociedade, capitaneada sobretudo pelos pastores evangélicos. É um conservantismo tão tosco quanto a doutrinação esquerdista que o precedeu, como só poderia ocorrer em um ambiente onde a cultura tornou-se rasa. O que foi que deu errado? Como um plano tão elaborado pôde fracassar tão miseravelmente?

Essa eu acredito ter a resposta. O ponto de falha foi precisamente o ponto que liga a cultura ao comportamento. Consoante com a estratégia de substituir o establishment cultural da elite pela suposta autenticidade popular, primeiro os intelectuais, depois os políticos de esquerda foram se aproximando cada vez mais de elementos marginais da sociedade. E no momento, não há nada que o povo tema mais do que a criminalidade desenfreada das grandes cidades. No poder, a esquerda recusou-se a reprimir os criminosos, receando incomodar aqueles a quem considerava seu público. Foi um erro enorme. A parcela mais pobre da população, longe de se identificar com os marginais, é a mais atingida por eles, posto que divide os mesmos espaços nas favelas e periferias. É dos pobres que tem vindo o maior clamor por dureza no combate ao crime. Acossada pela violência e pela imoralidade, vendo seus valores enxovalhados, o povão correu em massa para os pastores das igrejas pentecostais que brotam como cogumelos nas periferias.

O passo seguinte desses pastores foi entrar para a política, onde se compõem com outra estirpe em ascensão, os fascistas rastaqueras ou qualquer um que se proponha a baixar o pau na bandidagem, e desta forma obtém o apoio do eleitorado que tem como prioridade máxima o retorno da segurança e dos bons costumes. Assim formou-se a atual onda conservadora. Não sei até onde essa onda vai nos levar, mas tenho a esperança que será apenas o refluxo da onda de transgressão que a precedeu. Quanto à ressurreição de nossa cultura, para essa não coloco prazo. Apenas constato que uma vez vilipendiada a cultura superior, tocamos um fundo do poço constituído por aqueles valores mais elementares de todos, aqueles valores atemporais da cultura do povão, que não pôde ser destruída pelos intelectuais militantes, pois o povão não escuta os intelectuais, militantes ou não. Atingido o fundo do poço, vem o penoso esforço de subir novamente à tona. A primeira coisa a ser feita é restabelecer a noção do que é valoroso e do que não tem valor. Espero antes de morrer, ao menos poder escutar músicas boas que não sejam aquelas antigas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário