domingo, 13 de abril de 2014

O Balanço de 1964

Passada a onda de revisionismo dos cinquenta anos do movimento de1964, que uns chamam de golpe e outros de revolução, chamou-me a atenção, além da própria intensidade das discussões, a repetição de um sem-número de falácias acerca do evento, as quais tenho ouvido desde muito, tanto da turma dos apoiadores quanto da turma dos detratores. Agora que o bate-boca finalmente está esfriando, é um bom momento para enumera-las e decifra-las uma a uma. Vamos lá!


1)      O movimento foi fomentado pelos EUA.
Todos sabem muito bem que nos tempos da guerra fria, tanto os EUA quanto a ex-URSS e seus satélites intervinham ostensivamente em todos os lugares onde houvesse um movimento comunista efetivo ou potencial. No Brasil não foi diferente. É perfeitamente sabido que os EUA injetaram muito dinheiro nos partidos e organizações anti-Goulart. Mas o que até hoje causa realmente frisson na galera é a Operação Brother Sam, o envio da 4ª frota americana para apoiar os revoltosos. Fico impressionado como tantos a denunciam à boca pequena, como se tratasse de um segredo sujo. Mas eu me lembro muito bem: após 12 anos, em obediência ao regulamento da CIA, o documento foi desclassificado e publicado na imprensa. Foi em 1976. E saiu tudo lá: a 4ª frota americana fez um passeio, e no quinto dia, sem haver sequer chegado perto da costa brasileira, fez meia-volta e retornou, pois nenhum apoio era mais necessário. Estava inicialmente autorizada a somente enviar combustível aos revoltosos. O que aconteceria depois, caso Goulart resistisse? Haveria um desembarque? Bom, isso já é futurologia.
 

2)      Os comunistas estavam prestes a tomar o poder.
Não estavam, e isso ficou patente na ausência total de resistência, quando se dizia que Goulart tinha um formidável “dispositivo militar”. O poder dos comunistas foi grandemente superestimado, tanto por seus inimigos, o que era do interesse dos mesmos, mas também pelos próprios comunistas, o que foi desastroso para eles. Exatamente como já havia sido em 1935. Dizia-se que Goulart estava cercado de comunistas. Na realidade, os comunistas que cercavam Goulart eram os mesmos que antes cercaram Vargas e Kubitschek, a diferença foi que Vargas e Kubitschek puseram-se os comunistas a seu serviço, enquanto Goulart foi posto a serviço dos comunistas.
 

3)      Não havia guerrilha em 1964, e esta só surgiu depois do AI-5, como resistência à ditadura.
Muita gente acreditou isso, mas foi o insuspeito Jacob Gorender quem tratou de desmenti-lo em definitivo, em seu clássico Combate Nas Trevas: os primeiros grupos das Ligas Camponesas foram enviados para fazer curso de guerrilha em 1962, dois anos antes do golpe. É curioso afirmar que os guerrilheiros pós-AI-5 tinham como objetivo restabelecer a democracia, pois nenhum manifesto lançado por eles exigia a restauração da constituição de 1946 ou a volta do ex-presidente Goulart. Mesmo porque, na retórica dos guerrilheiros, o regime que havia aqui antes de 1964 não era democrático, mas tratava-se de uma “democracia burguesa” que devia ser derrubada e substituída por conselhos populares. Dizer como seria o regime instalado pelos guerrilheiros caso fossem vitoriosos é futurologia, mas tudo indica que seria inspirado pelo modelo cubano, que inspirava dez entre dez revolucionários sul-americanos na época. A esquerda só conformou-se à dita democracia burguesa após a anistia.
 

4)      Os revolucionários de 1964 não queriam o poder, mas apenas a restauração da ordem.
É mentira. Havia uma conspiração articulada desde a época do suicídio de Vargas, e esse esquema reunia essencialmente políticos udenistas com militares da ESG. Havia o consenso de que, pela via eleitoral, eles não chegariam ao poder, então aguardavam uma revolução providencial. Antes já haviam tentado impedir a posse de Juscelino e do próprio Goulart. Como se sabe, as coisas não saíram bem como planejado, e a maior parte dos conspiradores da época foi expurgada no momento em que supunham estar chegando ao poder.
 

5)      O dito Milagre Brasileiro foi uma época de extremo sofrimento para os trabalhadores, pois foi conseguido à custa da concentração de renda.
É uma interpretação maliciosa da realidade econômica e social da época, que procura passar a ideia de que os mais ricos enriqueceram à custa de empobrecer os mais pobres, como se estivessem subtraindo a renda destes. Houve de fato um aumento na concentração de renda. Mas a concentração de renda é nada mais que uma estatística que informa qual percentual da população detém qual percentual da renda nacional. A porção mais rica prosperou mais rápido que a porção mais pobre, daí haver aumentado sua participação na renda, em termos relativos. Mas em termos absolutos, tanto a renda dos mais pobres quanto a renda dos mais ricos subiu, e para quem é pobre, evidentemente o que importa não é o relativo, mas o absoluto. A prova disto foi a notória ausência de elementos das classes populares nos movimentos guerrilheiros, que contavam quase que exclusivamente com intelectuais, egressos do movimento estudantil, ex-militares e religiosos. Por este motivo mesmo os grupos guerrilheiros foram incipientes, e a própria dispersão das siglas – VPR, PCR, VAR, COLINA, MR-8, PCO, etc. - é uma evidência disto.
 

6)      Os governos militares foram entreguistas e submissos aos EUA
Uns mais, outros menos. De maneira geral, os militares deram prosseguimento ao modelo do nacional-estatismo que vinha desde os anos trinta, que preconizava forte presença do Estado na economia. Durante os quatro governos militares, a aplicação deste modelo oscilou entre sua vertente nacionalista (Vargas, Geisel) e sua vertente dita entreguista (Kubitschek, Castelo).
 

7)      O regime militar introduziu a tortura no Brasil
Já havia tortura antes, e continuou a existir depois. Mas era tortura a presos comuns, marginaizinhos pé-rapados, e esse fato não despertava comoção. O choque causado pela tortura durante o regime militar deveu-se sobretudo ao fato desta ser aplicada a jovens da classe média, indivíduos que, de acordo com a crença geral, não deveriam sofrer este tratamento.

 
8)      Havia menos corrupção / Havia mais corrupção na época
Os defensores do regime de 1964 afirmam que havia menos corrupção naquele tempo, e os detratores afirmam que havia muito mais, mas a censura não deixava a população saber. É evidente que havia corrupção naquele tempo, mas não é razoável supor que algum grande escândalo tenha permanecido oculto até hoje, tantas décadas após o fim da censura. A verdade é que a própria estrutura autoritária do regime tornava desnecessário maiores barganhas e compras de voto de parlamentares.

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