sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Três Democracias

Sabe-se que a América Latina é um caso muito peculiar no contexto do mundo ocidental. Já passou por várias experiências democráticas com recaídas em regimes totalitários, e principalmente, já experimentou tipos diferentes de democracia, até o momento definidas, grosso modo, como regimes oligárquicos ou populistas.

Este artigo que descobri, de autoria de Fernando Horta, contudo, consegue ser inovador em conceitos. Define três tipos de democracia recorrentes na América Latina fazendo uma comparação com arquétipos femininos atemporais: a mãe, a esposa e a puta. A democracia-mãe seria um modelo abstrato, enaltecido mas não realizado:

"A mulher-mãe é o campo do sagrado, do perfeito e do intocado (...) O arquétipo é tão forte que permite que machistas tenham ódio pelas mulheres e carinho pela sua mãe, num contrassenso que se desfaz na sacralidade da palavra 'mãe' (...) Os conservadores, por exemplo, admiram a 'democracia-mãe' (...) é tão venerada quanto mais irreal ela for. É muito comum, nos discursos conservadores a reiterada imagem de apoio e apreço à 'democracia', sempre – contudo – querendo referir-se à irrealidade do arquétipo de mãe. Pode-se ser, na cabeça desta gente, contra a participação popular e 'a favor da democracia', ou contra 'partidos políticos' e a favor da 'democracia', da mesma forma que se odiavam mulheres e amava a mãe"


Bastante dejà-vu, certo? Não preciso entrar em detalhes. Já a democracia-esposa seria a democracia consentida, que preserva a hierarquia social vigente:

"A esposa é aquela que 'ajuda a construir', mas dentro – e somente dentro – dos limites autorizados pelo masculino (...) O espaço de existência da democracia-esposa é todo aquele delimitado e permitido pelo poder econômico. E este não se sente constrangido em podar, diminuir ou mesmo eclipsar a democracia caso 'ela passe dos limites'. No fundo, o limite máximo é o código. A democracia só pode existir até onde 'O' código permitir"


Já a democracia-puta seria aquela que compreende os setores marginalizados da sociedade, sem estar autorizada pela classe dominante:

"A mulher-puta é a transgressora por natureza. Capaz 'das piores' coisas no mundo. Aquela que se dá e se deixa apenas pelo seu próprio instinto de necessidade e possibilidade. Incorrigível, indomável, violenta e incivilizada. A mulher-puta não tem dono (...) A democracia-puta gera medo (...) Ela tem a indignidade de flertar com os pobres, de se associar com os indigestos e não queridos. Ela é incontrolável. A democracia das ruas precisa ser contida com cassetetes e tiros nos olhos, para que não possa mais ver"


Tenho que convir que a comparação foi original e criativa, e forçoso é admitir, bem procedente em alguns pontos. Tanto que podemos acrescentar: no mundo real, o futuro das prostitutas não costuma ser alvissareiro. A profissão é desgastante para o corpo, muitas desenvolvem vícios e não raro terminam na pobreza depois que envelhecem, com a exceção de umas poucas que se tornam cafetinas. Exatamente o que tem acontecido com as democracias-putas que pululam na América Latina: ou levam seus países à pobreza após uma curta fase de gastança e deslumbramento, ou aderem ao capitalismo mais deslavado e reservado apenas aos seus apaniguados, aqueles que foram cafetinados...

A história mostra vários exemplos de países latino-americanos que passaram de um para outro entre esses três tipos de democracia, sem dar sinal de uma trajetória evolutiva, mas de um mero rodízio sem fim. O que fizemos de errado? No restante do mundo ocidental, as democracias antigas obtém sua estabilidade no bipartidarismo. Exatamente o que faltou entre nós. Até poucos anos atrás, tudo estava pronto para se estabelecer um bipartidarismo entre o PT e o PSDB, mas o PT preferiu fazer do PSDB seu inimigo figadal e se aliar ao que há de mais obscuro e pérfido em nosso espectro político. Ainda não foi desta vez...

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