domingo, 25 de março de 2018

Abstraindo a realidade: o caso Marielle

O assunto do momento é o assassinato da vereadora Marielle Franco. Não vou fazer aqui suposições sem fundamento sobre quem foi o assassino, nem me agrada sensacionalizar sobre cadáveres alheios. Vou apenas observar que os comentários que li a respeito têm despertado a minha atenção para um fenômeno que já venho observando há tempos: uma abordagem da questão da violência que não fala de personagens específicos, mas de coletivos vagos e abstratos: a injustiça social, o neoliberalismo, a homofobia, a cultura de estupros, o fascismo, o racismo e daí por diante.

As notícias sobre o crime quase sempre começam apresentando Marielle como "negra, favelada, gay". Mas seus assassinos seriam mesmo supremacistas brancos e homofóbicos?

Os políticos repetem o bordão de que o crime foi "um atentado à democracia e à cidadania". Não seria mais simples dizer que foi um atentado à pessoa Marielle Franco?

Alguns mais precipitados chegam a fazer uma analogia com o assassinato do estudante Édson Luís em 1968, como nesse artigo do Jornal do Brasil. Decerto esperando que a morte de Marielle vá despertar uma onda de insurreições contra o governo.

O propósito dessa retórica é dar uma leitura de luta de classes e racismo ao fenômeno da criminalidade. O resultado mais palpável é criar abstrações que escondem o mundo real como uma cortina de fumaça. No imaginário desses comentaristas, as favelas seriam enclaves étnicos injustamente invadidos por um Estado que deseja exterminar pobres, negros e gays. A luta contra o crime seria uma guerra civil, expressão que já se tornou lugar-comum ao se referir ao enorme número de mortos decorrente da alta criminalidade. É nesse contexto que o "povo do asfalto" sobe o morro vestido de branco e levando flores em um gesto de boa vontade para pedir paz ao povo da favela, que supostamente está em guerra contra nós.

Enquanto combatemos abstrações com mais abstrações, achando que o crime se combate com escolas, creches e manilhas de esgoto nos morros, os verdadeiros atores do crime, estes nada abstratos e bem concretos, têm livre curso de ação. O pessoal vestido de branco pede paz, e paz é tudo o que os bandidos querem, paz para continuar a vender drogas e assassinar seus rivais. O que está ocorrendo atualmente no Rio é uma guerra civil? Na verdade, não. O que conceitua uma guerra em curso não é o número de mortos nem o calibre das armas utilizadas, mas a existência de facções beligerantes visíveis, reclamando suas reivindicações e afirmando a justiça de sua causa. Nada disso acontece no mundo do crime. Os bandidos não têm uma face pública nem uma reputação a zelar, não estão a serviço de nenhuma facção nacional, étnica ou ideológica, mas apenas de seus interesses particulares escusos.

Não é uma guerra de ricos contra pobres, de brancos contra negros, de heteros contra gays. Ao menos não na visão de seus protagonistas, os favelados. Já vi manifestações e quebra-quebra de habitantes das favelas contra mortes causadas pela polícia, mas estas ocorreram apenas nas cercanias da favela, e a fúria popular direcionou-se apenas contra veículos da polícia ali parados. Nunca ouvi falar de favelados percorrendo bairros de classe média a agredindo pessoas aleatoriamente. Nem nunca soube de uma favela fazer manifestação de solidariedade por causa de uma morte ocorrida em uma favela de outra cidade, como acontece na Europa durante aqueles súbitos acessos de fúria que de tanto em tanto acometem os guetos de imigrantes, que saem pela cidade a queimar carros. Mas muitos por aqui sonham com "o dia em que a favela descer e não for carnaval", confiando que os marginais dos morros serão a nova classe revolucionária em substituição aos trabalhadores que aderiram ao capitalismo.

Não sei de que lado Marielle estava nesta luta, só sei que ela é mais uma baixa. Mas tenho o palpite de que ela acreditou demais em suas abstrações e não viu a realidade.

3 comentários:

  1. Crime não se especula, investiga-se. Fiquei quieto quando percebi que o caso era complicado e era melhor esperar as investigações. Tem gente da esquerda transformando a morte dela num insano complo da Waffen-SS de Direitas Armamentistas Malvados Nazistas.

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    1. Exato. Enquanto o pessoal mergulha nessas abstrações, os criminosos de verdade agem livremente. Fico imaginando as risadas que eles devem dar das teorias conspiratórias que o pessoa inventa.

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  2. O que eu acho que esse caso mostra, é como a esquerda realmente não se importa com a violência urbana aqui no Brasil. O pessoal tem falado muito nos policiais mortos ultimamente, e eles não estão nem ai. Foi tipo como se o país estivesse muito bem obrigado, e foi só matar *uma deles* que eles surtaram.

    Eles não propõem nada inteligente pra resolver o problema, apenas repetem as mesmas platitudes, palavras de ordens e slogans vazios repetidos.

    O Brasil precisa de uma esquerda melhorzinha.

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