sábado, 23 de julho de 2016

Meritocracia, palavra maldita

Eu que frequento habitualmente diversos forum's de discussão política, venho observando cada vez mais uma disposição em condenar a meritocracia, sobretudo no que se refere à educação e à disputa por vagas. Isso me causa certa apreensão. Meritocracia era até pouco atrás um termo erudito raramente mencionado, agora está jogado na lama. Conheço essa tática: para se destruir um conceito, muda-se o sentido da palavra que o define. O adjetivo meritocrático, originalmente elogioso, deve tornar-se uma ignomínia. Para isso o termo é usado vezes sem conta em contextos depreciativos, irônicos e misturado com outros xingamentos, e isso repetido vezes sem conta até que se estabeleça no senso comum a noção de que a meritocracia é uma coisa ruim.

O truque já deu certo com outras palavras, por exemplo, higienismo, que no princípio do século passado denotava uma elogiosa disposição para o saneamento urbano, e hoje evoca discriminação e racismo. Ignoro se vai funcionar com a meritocracia - o sentido elogioso do mérito é muito cristalino. Tentar eles tentam. Uns limitam-se aos xingamentos; outros, mais elaborados, tecem teses para demonstrar que a meritocracia é um truque usado pelas classes mais ricas para manter seu status quo. Um exemplo desses argumentos pode ser encontrado nesses textos de Renato Santos de Souza (UFSM/RS) aqui e aqui. Junto com a meritocracia, demoniza-se a classe média brasileira.

Quanto a mim, prefiro passar ao largo dessa discussão sociológica. Mesmo porque discutir a justiça da meritocracia é inútil desde o princípio, uma vez que a meritocracia jamais foi um valor moral, mas simplesmente um método de gestão. Como tal, seu propósito não é fazer justiça, mas produzir um resultado. O próprio conceito de mérito é subjetivo: alguns indivíduos, com certeza, se acham cheios de virtudes e merecedores de prêmio, já outros discordam. Mas há uma logicidade autoevidente na meritocracia: é o que eu chamo o Axioma do Time de Futebol. Em uma equipe de futebol, todos evidentemente querem ser os titulares, mas se não puderem sê-lo, preferem que os titulares sejam os melhores entre eles, pois é melhor ser reserva de um time vencedor do que de um time perdedor. Tal dilema se repete na vida prática. Em qualquer ramo de atividade de interesse geral para o país inteiro - por exemplo, na seleção de alunos para uma universidade ou para vagas de um emprego - a dita atividade será melhor desempenhada se forem favorecidos aqueles que têm melhor condição de desempenhá-la, independente de sua raça ou classe social. Se a atividade for desempenhada por indivíduos menos qualificados, o resultado será mais fraco, e isso, em algum grau, prejudicará a população como um todo, independente de raça ou classe social. Difícil é dizer em que grau isso ocorrerá, mas que haverá um resultado pior, isso haverá. É líquido e certo, independente de ideologias ou do juízo moral que se faça da meritocracia.

É justo? Não, não é. Também não é justo que o fogo queime e a água molhe, mas o caso é que o fogo queima e a água molha. A meritocracia não é justa, mas é racional. O destino inevitável de todos os países que desprezam a meritocracia é afundar na mediocridade e na pobreza - dizer isso chega a ser um pleonasmo, porque a mediocridade sempre se traduz em pobreza. Simetricamente, o talento atrai a riqueza, então sempre se poderá invocar o argumento de que o mérito é uma impostura dos ricos para preservar seus privilégios. Mas os fatos históricos estão à vista: os únicos exemplos de países que saltaram do terceiro mundo para o primeiro mundo são os países do sudeste asiático, que conseguiram esse resultado graças a uma rígida meritocracia que começa na escola e segue pela vida profissional afora. A receita é trabalhosa, mas simples em sua concepção: privilegiando os indivíduos mais talentosos, o trabalho deles potencializará a geração de riquezas, o que beneficiará a todos, inclusive aqueles que não são talentosos.

Mas a História também mostra abundantes exemplos de grupos e classes de indivíduos que mostraram total incapacidade de enxergar as mudanças que se processavam bem à sua frente, e foi assim que o Brasil e a América Latina deixaram de ser a região emergente do globo por excelência, posto que hoje cabe aos meritocráticos países do leste asiático. O ódio à meritocracia é mais uma faceta do profundo ódio de nossos intelectuais à toda e qualquer desigualdade que se apresente em um eixo superior/inferior, ainda que essa desigualdade seja resultado de fatores inatos que nada tenham a ver com posição social - afinal, o pobre também consegue coisas com seu esforço. Ignoro se a atual campanha de desonra ao mérito vai conseguir seu objetivo de subverter a conotação elogiosa deste vocábulo, mas é uma aposta perigosa: se não der certo, o efeito pode ser o oposto, como cuspir para o céu. Podem grudar na própria testa as etiquetas invejoso e recalcado.

Veremos.

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