terça-feira, 19 de agosto de 2014

O Caráter do Brasileiro

Não tenho muita afinidade com o povo brasileiro em geral, e não nego que muitas características típicas dos brasileiros incomodam-me. Sobretudo a mania de transformar tais defeitos de caráter em peculiaridades antropológicas – daí a lenda do Brasileiro Cordial; o culto a Macunaíma, o herói sem nenhum caráter; a exaltação da malandragem, do improviso, do jeitinho, do carnaval, do futebol – como se tudo isso fosse um traço identitário nosso. Não posso mudar nada, mas já que a moda é tecer todo um discurso sociológico em torno dessas ditas peculiaridades, então vou entrar também na discussão.

Entre os atributos brasileiros de que não gosto, o que mais me incomoda – e talvez por isso mesmo, seja uma síntese de todos os outros – é um excessivo caráter gregário. Brasileiro gosta de andar sempre em bando, indivíduos introspectivos são mal vistos. As ligações familiares prolongam-se além do núcleo familiar, e persistem pela vida adulta afora, muitos familiares vivendo juntos. As amizades são tão numerosas quanto superficiais. Fala-se sobretudo de um jeito caloroso, afetuoso de ser, que seria típico do brasileiro. É nesse ponto que chegamos ao batido arquétipo do brasileiro cordial, sobre o qual já me referi em outro artigo.
O que há de verdade nisto tudo?

Não me permito discordar, ainda mais que tenho exemplos vivos em toda parte. O que eu discordo mesmo é da crença de que tudo isso tudo seria uma idiossincrasia nossa. A meu ver, esses atributos são herdados. Todo o mundo sabe que esse jeito de ser e de falar, de cumprimentar tocando e beijando, é comum a todos os povos latinos sul-europeus, nossos ancestrais. A insistência em apresentar esses traços culturais como invenção brasileira, a meu ver, revela uma vontade de ver um “algo mais” neles. De minha parte, vejo apenas um excesso de linguagem corporal e jogo de cena, hábito de mentir educadamente. Conforme é sabido, nunca se deve despedir de um inglês dizendo “aparece lá em casa”, ou ele aparecerá mesmo. Nós nos acostumamos a esses estereótipos: os ingleses escondem as emoções que sentem, os latinos mostram as emoções que não sentem. Os ingleses são individualistas, nós somos gregários. Mas já que a proposta é extrair daqui algum significado antropológico profundo, vamos lá: trata-se, a meu ver, da reminiscência de uma organização social pretérita, orientada ao clã familiar. É por este motivo que nós valorizamos mais as ligações afetivas e familiares do que quaisquer outras formas de filiação, inclusive ideológicas e religiosas, conforme explicou Sérgio Buarque de Hollanda, o criador do arquétipo de brasileiro cordial, mas poucos prestaram atenção, haja visto que continuam a interpretar a cordialidade como brandura e mesura. Mas o cordial de Buarque de Hollanda vem da palavra latina para coração, denotando emoção: somos mais emocionais do que racionais, foi isso que ele quis dizer.
Não discordo de Buarque de Hollanda, mas isso colocado dessa forma, como se fosse uma idiossincrasia nacional, uma invenção brasileira, assume ares de mito fundador, o que reveste a ideia de uma aura de dignidade e fornece-lhe um álibi contra todas as críticas: somos assim porque somos brasileiros, e isso sendo uma condição imutável, não nos cabe criticar, mas exaltar, do contrário estaremos exercitando sentimentos neuróticos de auto-rejeição. Ponto. Mas repetindo o que afirmei acima, isso não é uma idiossincrasia brasileira, e tampouco permite tirar uma conclusão que identifique o brasileiro como um povo único e diferente dos demais. No máximo, permite classificar-nos entre os povos atrasados, mais próximos de uma organização social primitiva e orientada ao clã familiar, em detrimento da cidadania. Há muitos outros exemplos de povos do Terceiro Mundo com essas características, o que efetivamente distingue o brasileiro é essa disposição em tecer um discurso sociológico dignificando tais atributos; que eu saiba, em nenhum outro país houve intelectuais que criassem mitos análogos ao do homem cordial, Macunaíma, o malandro, etc. Pode ser que exista, mas eu desconheço. Devíamos é acabar com isso. Aqueles que refutaram o mito do brasileiro cordial apresentando incontáveis episódios de violência em nossa História, isso levados pelo equívoco de tomar cordial por gentil, fizeram-no com toneladas de razão: de fato, para manter a velha organização social orientada ao clã familiar, é imprescindível uma considerável dose de autoritarismo, a fim de reprimir as veleidades individuais e enquadrar todos à força no coletivo tribal. Daí para a violência é um passo.

É sabido que os antigos clãs familiares brasileiros tinham um patriarca. Figura revestida de toda a autoridade, ele comandava esposa, filhos, parentes, agregados, empregados, etc. Esse modelo de família estendida ainda marca nossas relações sociais. Quem está de fora e vê aquele familião, todos interagindo, não raro morando juntos, fica com uma impressão de solidariedade e mútua cooperação. Mas quem está do lado dentro, vê a coisa como realmente é: um mundo onde prevalecem os mais atirados, os mais audazes, quando não os mais descarados, enquanto indivíduos tímidos e escrupulosos são espoliados. Não existe mais a figura do patriarca, mas o autoritarismo que dele emanava ainda está impregnado em nosso tribalismo tardio, e manifesta-se sobretudo no pouco respeito à privacidade alheia, este que é o mais ínfimo dos bens pessoais, e prossegue na perseguição aos “diferentes”, na disposição de fazer uso comum com o que é de outros, em sequestrar o individual para o suposto benefício do coletivo. Seria até uma amostra de altruísmo e entendimento de nossa parte, não fosse esse apreço pelo coletivo tribal paralelo ao mais absoluto desprezo pelo que está fora de tal coletivo. Como bem demonstrou Buarque de Hollanda, a fidelidade brasileira à família e aos amigos impede que ingressemos em formas de organização social superiores, orientadas à cidadania e ao Estado, pautadas na legislação comum e no respeito ao que é privado. Da falta de respeito à privacidade à falta de respeito à propriedade é apenas um passo. Aquele ministro corrupto, no final das contas, pode até ser um bom sujeito: tudo o que ele queria ao fraudar as licitações era beneficiar parentes e amigos donos de empresas, não era isso? Evidente que aquilo que é bom para a curriola dele não é bom para o país, mas é assim que raciocina o homem cordial, e é assim também que muitos de nós raciocinamos.
Em tempos não tão distantes, governava-se o Estado como se governava a família: de forma autoritária, frequentemente violenta. Hoje, são os cacos dessa organização social arcaica que impedem um uso mais proveitoso de nossas relações sociais, desde nosso círculo pessoal, passando pelo profissional até chegar à administração pública. Continuamos a não fazer uma distinção nítida entre público e privado, o que é nosso do que é dos outros, sempre à espera de que algum patriarca surja das cinzas e faça a mediação necessária para estabelecer a boa ordenação. O apreço por líderes políticos carismáticos é apenas um dos aspectos desta questão. Está na cultura popular, isso não vai mudar de uma hora para a outra. Mas bem podíamos começar por parar com a mania de transformar nossos defeitos de caráter em peculiaridades antropológicas.

Um comentário:

  1. um pensador italiano de passagem por aqui definiu como "a cultura sambista", referindo-se à obsessão do brasileiro em perseguir uma imagem carnavalesca de si próprio. "Apenas no Brasil Jorge Amado seria considerado um escritor de primeira linha. Eu peguei essa frase e coloquei aqui para dizer que este italiano disse a verdade.

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