domingo, 27 de abril de 2025

Enterrando o Cadáver de 1964, ou de 1889

Jã havia comentado aqui antes: todo ano, por volta do fim de março, vê-se uma enxurrada de artigos comentando a revolução/golpe de 1964 como se ainda se tratasse de uma notícia fresca, dando claro sinal de que o assunto ainda não pertence à História, tampouco há uma versão definitiva a respeito. Mas esse ano foi diferente. Veja esse artigo de Leonardo Sakamoto, Com Generais Réus por Golpe, Brasil, enfim, pode enterrar o Cadáver de 1964.

"Quando o STF aceitou a denúncia contra três generais e um almirante por articular uma tentativa de golpe em 1964, ele pode ter ajudado a colocar um fim no 31 de março de 1964 (...) O ex-ministro da Casa Civil e da Defesa, general Walter Braga Netto, o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, o ex-ministro da Defesa general Paulo Sérgio Nogueira e o ex-comandante da Marinha almirante Almir Garnier estavam na primeira leva de denunciados que se tornaram réus por golpe"

Não concordo com tudo o que Sakamoto escreveu. Mas penso que se um cadáver foi enterrado, não foi o de 1964, mas o de 1889.

Durante anos festejamos a proclamação da república em 1889, esquecidos de que estávamos comemorando o primeiro golpe militar da história do país. Em 15 de novembro de 1889, um brasileiro que tivesse 40 anos de idade poderia afirmar que jamais vira um golpe de estado, nem uma revolução, nem uma guerra civil, nem outra constituição além daquela da monarquia, então a segunda mais antiga do globo, atrás apenas da americana. Tivemos que esperar até o século 21 para que um brasileiro da mesma idade pudesse dizer o mesmo.

Desde então, construiu-se o mito dos militares como reserva moral e garantidores da ordem e da segurança interna, que cristalizou-se como a figura de um suposto Poder Moderador, antes exercido pelo imperador que foi por eles deposto. Os acontecimentos não confirmaram essa assertiva: a "república da espada", comandada pelos dois primeiros marechais-presidentes, foi uma época de total caos político e econômico, revolução e guerra civil, fazendo chocante contraste com a ordem e a estabilidade reinantes no Segundo Império. Por toda a história republicana do século 20, militares conspiraram incessantemente contra vários governos, espalhando a instabildade e alimentando ambições.

Contudo, permaneceu a crença de que a presença dos militares na política seria essencial a uma etapa necessária para garantir a preservação da ordem política e do desenvolvimento, impedindo a desintegração do país em lutas internas. A perspectiva histórica desmente essa visão. Nenhum pais hoje desenvolvido passou por uma fase de governos militares, exceto o Japão, cujo período militarista culminou no desastre da segunda guerra. Ao contrário, olhando a nossa vizinhança, vê-se que a presença de militares nos governos, longe de ser uma garantia contra a desintegração, era de fato um sintoma dessa desintegração. O Brasil, durante o século 19, permaneceu íntegro com um sistema político estável que funcionava e evoluía em direção a um regime parlamentar. Nossos vizinhos tentaram imitar o republicanismo norte-americano sem ter a base social para isso, enquanto herdamos intactas instituições da antiga monarquia portuguesa, que justamente por serem compatíveis com nossa base social, tinham muito mais possibilidade de evolução - o que vinha acontecendo. Mas em 1889 essa herança foi dilapidada.

Não admira que todos os nossos heróis militares datem do século 19, época em que os militares estavam longe da política. É certo que vários personagens tiveram carreiras paralelas entre o exército e a política, a começar pelo próprio Duque de Caxias - mas eram homens do governo junto ao exército, e não homens do exército junto ao governo. Por este motivo mesmo, foram deprezados pelos golpistas republicanos, e Caxias só seria feito patrono do exército muitas décadas depois.

Se não temos mais guerras que possam gerar heróis militares, que ao menos os militares sejam reduzidos à disciplina e ao cumprimento de suas obrigações.

domingo, 13 de abril de 2025

América e China

América e China era o nome de uma loja na minha infância, que vendia coisas interessantes e diferentes, que não se achava em outro lugar. Creio que o nome sugeria essa vastidão que podia abarcar polos tão diferentes. Mas agora o nome bem sugere o panorama global, dominado pela América de Trump e sua guerra comercial contra a China.

No meu tempo, a polarização era entre os Estados Unidos e a ex-União Soviética, ditas superpotências. O Brasil era a potência ascendente, assim como a China. Mas tudo mudou. A União Soviética fracassou como superpotência, e foi rebaixada a membro dos BRIC's, mera potência ascendente. A China surpreendeu. O Brasil é o país do futuro, e... continua sendo. Na verdade, ninguém nem fala mais nisso. Nos anos cinquenta tínhamos a utopia dos 50 anos em 5 de JK. Nos anos sessenta a garotada rebelde tinha a utopia socialista da revolução cubana. Nos anos setenta havia a utopia do Brasil Grande dos militares. Hoje não há mais utopias.

Por que a China triunfou, e o Brasil fracassou? Ou será que foi isso mesmo? Comparando Brasil e China, o território é mais ou menos do mesmo tamanho, o que já basta para sinalizar uma futura potência. Mas a China tem um bilhão e quatrocentos mil habitantes, enquanto o Brasil tem duzentos e doze mil. As rendas per capita do Brasil e da China são quase as mesmas, US$ 20.667 e US$ 20.885 respectivamente. Mas o PIB bruto da China é US$ 29,375 trilhão, enquanto o do Brasil é US$ 4,101 trilhão. Isso significa que a população chinesa vive mais ao menos como a brasileira, entre áreas ricas e pobres. Mas se a China necessita de alguns bilhões para desenvolver um novo avião de caça, ou para uma missão espacial, ela tem.

Então, não há tanta semelhança entre Brasil e China, em termos de números. E de política? A China é comunista, e o Brasil é capitalista. A China tem desfrutado de um quadro político estável, que permite rígida aplicação de planos de longo prazo. Nem todo plano de longo prazo necessariamente dá certo, mas o da China aparentemente deu certo. Nosso quadro político teve numerosas guinadas nos últimos 70 anos, mas nosso modelo econômico permaneceu mais ou menos o mesmo entre os anos 30 e 80, o desenvolvimentismo nacional-estatista, oscilando entre sua vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel) e sua vertente "entreguista" (Kubitchek, Castelo Branco). Esse modelo esgotou-se nos anos 80, mesma época em que a China deslanchou. Hoje vemos nossa falha com nitidez: nosso desenvolvimento industrial era voltado para o Estado, e não para o mercado. As empresas nacionais produziam computadores caros para vender a empresas estatais que estavam obrigadas a comprar produtos nacionais.

Ironicamente, então, o Brasil capitalista praticou um modelo soviético, que fracassou, enquanto a China comunista valeu-se de um modelo capitalista, ao menos em certos nichos.O princípio foi: toda liberdade ao capital, nenhuma ao indivíduo. E deu certo.

Mas não adianta julgar. O trem da História passou, e ficamos na estação. O mundo pertence a América e China, e somos espectadores. Sem utopias.