quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Chegaremos ao pós-marxismo?

Se estritamente falando, a finada era petista nada teve de um regime marxista - nada de ditadura do proletariado, nada de coletivização, nada de expropriação dos meios de produção, apenas um crescimento desmesurado do Estado e seu respectivo corolário de aumento da corrupção - é fora de dúvida que a chegada desta era foi longamente embalada por um estofo de ideias classicamente marxistas, gestadas nos meios universitários e difundidas pelos meios artísticos, literários e midiáticos. O muro já havia caído, mas o fundo do ar que respirávamos era, decididamente, vermelho.

É certo que o PT, desde muito convertido ao pragmatismo, confinou essa efervescência ideológica às bases, a fim de manter os militantes entretidos e trabalhando enquanto a cúpula do partido dedicava-se à tarefa de montar uma máquina de compra de apoio visando eternizar-se no poder. É certo também que a derrocada do PT nada teve de uma revolução - não foi um choque de ideias - mas prosaica manobra política para remover um governo que já havia perdido toda a sustentação. Mas é fato que o citado estofo de ideias, postas em prática de forma sistemática sob o embalo da militância organizada naquilo que ficou conhecido como o marxismo cultural, causaram, sim, impactos variados na sociedade civil, e a reação que suscitaram talvez tenha tido um papel ainda não bem medido no que diz respeito à perda de apoio do PT nas ruas - os conservadores, que hibernavam desde o início do regime dos generais, saíram do armário, e o povão, acossado pela violência e pela imoralidade, vendo seus valores tradicionais enxovalhados, correu para os braços dos pastores evangélicos. Ensinam os analistas que nada se materializa no mundo da política sem antes haver tomado forma no mundo das ideias. E se o ultrapassado marxismo embalou a era que agora parece chegar ao fim, chegaremos ao pós-marxismo embalando uma nova era em nossa política?

Tenho alguns motivos para achar que sim. O choque causado pela perda do poder está fazendo alguns intelectuais de esquerda repensarem suas ideias, coisa que eu nem imaginava até alguns meses atrás. Esse artigo publicado no Jornal GGN é uma boa amostra.

Como pode ser observado nos comentários que o artigo provocou, houve uma furiosa e quase histérica reação da parte de comentaristas que viram-se subitamente sem chão após o desmentido de teses que tinham como dogma absoluto, e que foram postas em dúvida pelo autor do artigo, ainda que de forma confusa e incompleta. A minha impressão é que a crosta começa a se romper.

Por décadas e décadas os intelectuais universitários brasileiros repetiram esquematismos ideológicos e fizeram esforços para encaixar, nem que fosse a marteladas, a realidade nacional dentro dos moldes criados por Marx para a Europa da revolução industrial. Foi nesse quadro de polarização entre industriais e proletários que Marx urdiu a tese da luta de classes, que enganosamente estendeu por toda a História desde o princípio dos tempos, e predisse sua continuação por toda a História até o fim dos tempos, que em sua utopia seria um mundo sem classes e sem Estado. Esse modelo parecia consistente na Europa do século 19, onde a classe operária crescia sem parar, havia poucas categorias de trabalhadores, todos executando tarefas parecidas nas mesmas fábricas, recebendo os mesmos pagamentos e à noite retornando para os mesmos bairros proletários. Nesse quadro ficava fácil organizar-se e reivindicar em bloco, e a luta de classes parecia uma ideia palpável.

Hoje se vê que o mundo é bem mais complexo. O setor secundário (indústria) encolhe a cada ano à medida em que cresce o setor terciário (serviços). Há muito mais categorias de trabalhadores, com tarefas e salários bem díspares, muito mais sindicatos, tornando difícil uma organização em bloco que fundamente a tese de uma luta de classes nos moldes marxistas. Nota-se também a ingenuidade da noção de que um governo de proletários, uma vez instituído, por si só bastaria para aumentar a riqueza dos proletários. Essa ideia sustentava-se sobre um pressuposto simplório: de que os burgueses, na condição de proprietários dos meios de produção, direcionariam os recursos existentes para seu próprio consumo ao invés de atender às necessidades da população como um todo. Esquecem-se de que os burgueses, no mais das vezes, não produzem para o consumo de outros burgueses, mas para o consumo dos proletários, que constituem um mercado muito maior. Fazer muitos ítens baratos para os pobres sempre rendeu mais do que fazer poucos ítens caros para os ricos, afinal, é a Vokswagen a dona da Rolls-Royce, e não a Rolls-Royce dona da Volkswagen, e é a FIAT a dona da Ferrari, não a Ferrari a dona da FIAT. Desta maneira, as forças do mercado obrigam os burgueses a produzir "a cada qual conforme a sua necessidade" na medida em que existam as capacidades para tal.

Se conseguirmos chegar ao pós-marxismo, talvez um dia, enfim, cheguemos ao capitalismo...

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

O Brasil já tem patrimônio histórico?

Por patrimônio histórico refiro-me àquele conjunto de fatos que, embora localizados no passado, conferiram aos eventos futuros um direcionamento que permanece até o tempo presente, e até onde se pode julgar, são perenes e irreversíveis. Quem estuda História acostuma-se a atribuir um patrimônio histórico somente às nações ditas desenvolvidas, aquelas que, para um brasileiro, despertam um misto de inveja e admiração, cuja estabilidade no presente deve-se a um passivo de revoluções gloriosas e consistentes mudanças sociais conduzidas por grandes heróis ou por multidões anônimas. Já por aqui, o máximo que um historiador consegue detectar é uma sucessão de ciclos ou etapas distintas, sem nunca saber qual será a próxima etapa e sem nunca desconsiderar a possibilidade de um retrocesso e de um retorno a etapas que acreditávamos superadas. Pobre de nós, não temos patrimônio histórico!

Mas os acontecimentos do presente permitem uma reflexão. Refiro-me ao impeachment da presidente Dilma Rousseff. Já me referi em outros artigos ao fenômeno dos corpos estranhos que surgem periodicamente em nossa História, e são sempre expelidos de alguma forma mais ou menos inócua pelo organismo político; sob este aspecto não há novidade, Dilma apenas vai juntar-se a Collor, Maluf e Jânio Quadros. Tal como nas outras ocasiões, o futuro é incerto e não se descarta uma volta ao passado.

Fim do ciclo populista? Pode ser. Mas eu noto que desta vez, entre uma etapa e outra, alguma coisa ficou. Refiro-me ao Plano Real, lançado 22 anos atrás e anunciado com alarde como uma nova e definitiva matriz econômica para a nação. Conhecendo o destino dos planos anteriores, há amplos motivos para se duvidar dessa assertiva. Mas 22 anos já permitem alguma observação: o Plano Real foi fustigado, mas sobreviveu. Bem ou mal, é graças a ele que a recessão atual, embora seja a pior que o país já teve, não repete as cenas anteriores de ruas lotadas de camelôs e filas de emigrantes nos aeroportos, tão comuns nos anos 80. Os salários e os benefícios ainda conseguem manter seu valor, e não foram destruídos para financiar as aventuras tão a gosto dos economistas desenvolvimentistas, tal como acontecia no passado, quando a inflação era um recurso a que os governos lançavam mão sem pudor algum para cobrir seus rombos e jogar a fatura para a massa dos usuários do papel-moeda, sempre com a desculpa de que assim se impulsionava o desenvolvimento e criava-se empregos.

Não interpreto a atual queda do governo como o resultado de um embate entre PMDB e PT, PSDB e PT, Eduardo Cunha e Dilma, direita e esquerda, mas um embate entre o nacional-estatismo e o Plano Real, com a vitória deste último. De fato, desde o anúncio da Nova Matriz Econômica ao final do segundo mandato de Lula, o núcleo nacional-estatista do PT, oriundo do varguismo e patrocinado por Dilma Rousseff, tem se empenhado em um combate sem tréguas contra o Plano Real, que apesar de tudo, permaneceu. O país não enveredou pelos caminhos da Venezuela ou da Argentina.

Pertencerá o Plano Real ao nosso recém-nascido patrimônio histórico?