sexta-feira, 27 de março de 2015

O Brasil e o Mundo Ocidental

Pouca gente se dá conta, e dos que dão conta, poucos dão a devida importância ao assunto, mas uma descoberta que fiz recentemente, e que chamou minha atenção, foi que boa parte do Mundo Ocidental não considera o Brasil parte do Mundo Ocidental. Outros também - jornalistas, acadêmicos - fizeram a mesma descoberta, com surpresa e alguma apreensão: o professor de literatura Alex Castro, trabalhando em uma universidade norte-americana, descobriu que seus alunos matricularam-se em seu curso porque queriam ter contato com uma literatura não-ocidental. O jornalista Guga Chacra fez a mesma descoberta. E a também jornalista Gisela Anauate conta como descobriu em Paris que não era ocidental.

Faz diferença? Essa podia ser uma discussão bizantina sobre conceitos subjetivos, mas faz diferença, sim. Por detrás da exclusão do Brasil do imaginário ocidental, há posturas pessoais e atitudes que podem efetivamente prejudicar-nos. Não confio em quem pensa isso de mim. Podemos afirmar: afinal, acreditem ou não, nós somos parte do ocidente, como provam nossa colonização, nossa língua, nossa religião, nossa cultura, nossa inserção em uma História européia que teve início quando Cristóvão Colombo aportou neste continente. Inútil: não se pode provar, cabalmente, que pertencemos ao Mundo Ocidental, pois esse conceito não tem uma definição estabelecida, mas pertence ao senso comum. O senso comum, como se sabe, muda com o tempo, e na época atual a ideia de Ocidente está ligada aos valores políticos e econômicos tornados dominantes a partir da hegemonia mundial européia. Pertencem ao Ocidente os países da Europa Ocidental, Os EUA, o Canadá, a Austrália e Nova Zelândia, pois são capitalistas, ricos e democráticos. O Brasil e o restante da América Latina não pertencem ao Mundo Ocidental porque são pobres. Ponto. Mas seguindo essa linha de raciocínio, o Japão também é incluído no Mundo Ocidental porque, afinal, também é capitalista, rico e democrático.

A inclusão do Japão parece-me ainda mais absurda que a exclusão do Brasil. O Japão tem sua própria civilização, a qual, tendo cinco mil anos de História, é mais antiga que a própria civilização ocidental, que tem apenas dois mil anos. O caso é que a acepção em uso do conceito de Ocidente exclui toda referência cultural. Tornou-se um paradigma, reduzido de fato a sinônimo de Primeiro Mundo. Entretanto, se o senso comum pode modificar o sentido das palavras, não pode apagar o significado anterior, pois este continua registrado em impressos e na memória das pessoas: ocidente, no dicionário, ainda significa um lugar específico do mapa, e no contexto da presente discussão, sabemos que este lugar é a Europa Ocidental, e não outra parte do mundo. Uma vez que o Brasil foi colonizado por países da Europa Ocidental e é herdeiro da cultura aqui deixada pelo colonizador, penso que temos motivos pertinentes para afirmar que somos parte do Mundo Ocidental, tanto quanto norte-americanos, canadenses e demais países do Novo Mundo colonizados por europeus.
Uma alternativa para contemporizar seria lembrar que a formação do Brasil não incluiu somente europeus, mas também índios, africanos e asiáticos. Soa bem. Mas não resolve a questão: sob esta lógica, EUA, Canadá e Austrália também seriam países não-ocidentais. No entanto, não são apenas europeus e norte-americanos que querem nos excluir do Ocidente; muitos latino-americanos têm o mesmo propósito, mas com objetivos diferentes. Todos se lembram quando Hugo Chávez, na Venezuela, declarou que não mais comemoraria o dia da descoberta da América, posto que não havia nada a comemorar, uma vez que o que teria de fato ocorrido foi uma invasão que trouxe a desgraça aos povos originários. Esta não é a opinião apenas de líderes carismáticos, muitos antropólogos e historiadores endossam a tese: a civilização latino-americana já existia em 1492 quando foi invadida por europeus. Assim, o que existe hoje nessa parte do globo não seria uma parte da civilização ocidental, mas uma civilização créole, mesclando elementos europeus com ameríndios.

Vale conferir. Há de fato locais da América do Sul e Central - os Andes, o México, o Caribe - onde existem descendentes de antigos povos autóctones que falam a língua e praticam costumes de seus ancestrais. Mas são apenas aqueles poucos grupos étnicos que eram evoluídos e tinham cultura vigorosa quando o europeu chegou. Na maior parte do continente, a população indígena era primitiva e foi totalmente aculturada, deixando como legado apenas vestígios de sua cultura original. O brasileiro pode ser caboclo ou mulato, mas não fala tupi ou ieorubá, fala o português deixado pelo colonizador. Não acredito ser válida, do ponto de vista antropológico, a definição de uma civilização sul-americana original e distinta da civilização ocidental. Ou melhor dizendo, a civilização sul-americana não é uma civilização, mas um gueto, um conceito que foi inventado para aparta-la do Mundo Ocidental.

A quem interessa aparta-la? Do nosso lado, aos nacionalistas exaltados, que desejam afrontar o antigo colonizador, ao mesmo tempo em que cortejam os antigos descendentes de índios e criam um senso de solidariedade com o resto do Terceiro Mundo. Na extremidade oposta, os membros ricos do Mundo Ocidental desejam apartar-nos porque, do contrário, teriam que admitir que o Mundo Ocidental contém países pobres. Uma vez que na conceituação destes, o Ocidente foi reduzido ao paradigma Capitalista-Rico-Democrático, então por definição não existem pobres no ocidente. Vê-se que tanto de um lado quanto do outro a exclusão da América Latina do Ocidente esconde sentimentos mutuamente hostis, senão de baixa paixão, por detrás do arrazoado tecnicista. Nós nos excluímos porque desejamos renegar nossos colonizadores; eles nos excluem porque lhes é vergonhoso compartilhar seus contexto civilizacional com pobres. Uma abordagem desapaixonada, a meu ver, não pode concluir outra coisa senão que a América Latina é um ocidente pobre, e que a civilização ocidental, como toda civilização, também contém partes pobres. De resto, mesmo os membros do Mundo Ocidental tidos atualmente como efetivos não foram sempre ricos, nem foram sempre democráticos. E não custa lembrar que o comunismo, tanto quanto o capitalismo, surgiu no cerne mesmo do Mundo Ocidental antes de espalhar-se pela periferia.

Acredito que devemos, sim, afirmar nossa condição de membros do Mundo Ocidental, ao invés de relativizar a questão. Somos um ocidente pobre, mas tão produto da colonização européia quanto EUA ou Austrália. Abrir mão desse vínculo só tem o efeito de nos deixar à deriva, privados de referenciais, tentando construir do zero uma hipotética civilização latino-americano. O próprio nome é autocontraditório, pois afinal, de que outro lugar veio o latino, senão da Europa? Que eu saiba, o Latium era a região da Itália central onde surgiu Roma. Trata-se de outra mistificação que bem devíamos combater: assim como o conceito de Mundo Ocidental tem sido transmutado em Primeiro Mundo, o conceito de latino tem sido transmutado em não-europeu (ou não-branco), ou seja, o que é originado da América do Sul ou Central. É um erro enorme. Nossa latinidade é o vínculo que nos une ao cerne mesmo da civilização ocidental, que conforme se sabe, é formada pela conjunção da herança greco-romana (ou latina) com a tradição judaico-cristã.

terça-feira, 17 de março de 2015

A classe média, de volta a seu lugar

As manifestações deste domingo ainda estão sendo digeridas pelos observadores, e pipocam aqui e ali conclusões meio disparatadas. Mas desde já noto dois aspectos que não deixam dúvida. Primeiro, ao contrário das manifestações de 2013, desta vez há cartazes dizendo Fora Dilma e Fora PT. Os manifestantes têm um alvo, não estão contra "tudo isso que está aí". Segundo, noto que os manifestantes foram, em sua maioria, integrantes da classe média. Então, pela primeira vez em muitos anos, a classe média e a esquerda estão em campos opostos.

Isso não deveria ser uma contradição. Afinal, a classe média, também conhecida como pequena burguesia, é considerada conservadora e aliada da alta burguesia de acordo com todos os manuais de sociologia. Mas no Brasil, ao menos desde 1964, nos acostumamos a ver a classe média como celeiro de esquerdistas. É fato que o próprio PT, em seus primórdios, teve como esteio a classe média politizada, sobretudo estudantes e intelectuais, antes de cair no gosto do eleitorado-povão. Mas é preciso lembrar também que 1964 foi o ano que viu as últimas manifestações de massa promovidas pela classe média conservadora. Acredito então que o viés esquerdista que a classe média nacional adquiriu desde então foi produto da desilusão com o regime de ditadura que essa própria classe média havia ajudado a colocar no poder.

Mas agora a classe média está desiludida com o regime populista que igualmente ajudou a colocar no poder. Que o PT fosse um dia romper com esta classe que fora o seu esteio, isso era esperado a partir do momento em que este partido obtivesse um eleitorado suficiente para sustenta-lo no poder. Ora, a grande massa dos eleitores é pobre, nunca compartilhou dos valores tradicionais da classe média, e se o PT agora depende deste eleitor, é a ele que deve atender, e pode até dispensar o apoio da classe média, numericamente insuficiente para sustentar um partido majoritário. O PT serviu-se da classe média, tal como escada que usou para chegar ao topo, e depois de galgar o último degrau, chutou-a.

Isso é mau? De certa maneira, não. Isso fez as coisas voltarem a seu lugar e recolocou a classe média em sua posição natural de antagonista da esquerda, conforme pode ser percebido nos adjetivos com que tem sido brindada pelos militantes governistas. A farsa terminou. Mas convém lembrar: se a classe média é pouco relevante numericamente, ela é muito relevante culturalmente, capaz de gestar e veicular ideias que se propagam pelos núcleos de poder. Para o bem ou para o mal. O que virá desta vez?

quinta-feira, 12 de março de 2015

É viagem, ou a história se repete?

Impeachment, impeachment, impeachment, estou ouvindo essa palavra a toda hora. Não acredito em impeachment de Dilma Roussef, pois rigorosamente falando, isso não interessa a ninguém, posto que o mais vantajoso para os opositores é deixar a presidente se queimar até o toco, de modo que a eleição de 2018 seja disputada com um PT beijando a lona. Se Dilma sair, quem a substituir vai ter que segurar o rojão - e ninguém está a fim.

É possível, contudo, que uma hora Dilma seja forçada a renunciar, e isto seja exigido pelo próprio PT, que em breve estará engajado na campanha de Lula para 2018 e será crucial não permitir que a imagem elameada de Dilma suje a imagem imaculada de Lula. Engana-se quem julga que Lula sai perdendo com a queda de Dilma - ele é uma liderança carismática, baseada em sua própria pessoa (ou mais exatamente, no personagem que ele criou) então sempre soube desvincular a pessoa do partido. Lula é Lula, o PT é o PT. Acredito que, em determinado momento, Lula vai anunciar seu rompimento com Dilma, dizer que a culpa foi toda dela e que ele não sabia de nada, e lançar sua candidatura. Comparando os tempos bons de Lula com os tempos maus de Dilma, o eleitorado vai desejar ardentemente a volta dos bons tempos, e pode dar a Lula uma espetacular vitória. Assim, ironicamente, o debacle de Dilma e do PT, tal como o movimento de uma gangorra, pode servir para alavancar o retorno triunfal de Lula à presidência.

Mas falava de impeachment, e minha memória trouxe-me de volta ao tempo em que eu escutei pela primeira vez essa palavra: era 1974 e eu era garoto. O todo-poderoso presidente americano, Richard Nixon, estava ameaçado de um impeachment e terminou por renunciar. Estou notando curiosos paralelos entre este episódio e o momento político atual do Brasil - será que a História é reencenada com diferentes atores em diferentes teatros, em épocas distintas? Pouco antes, Nixon estava ultra desgastado em razão da guerra do Vietnam, e as eleições de 1972 estavam chegando. Mas sendo ele uma raposa velha tão esperta quanto o nosso Lula, subitamente anunciou como sua plataforma o fim imediato da guerra. De um instante para outro, todas as expectativas se inverteram e Nixon obteve uma das vitórias mais acachapantes da história norte-americana.

Mas dois anos depois, ele caía, vítima de um impeachment...

quarta-feira, 4 de março de 2015

A evolução da corrupção no Brasil: tentando decifrar

Uma sensação generalizada e inequívoca no momento atual é de que nunca houve tanta corrupção no Brasil. E como ela vem em um crescendo desde a descoberta do mensalão em 2005, não há qualquer vislumbre de onde iremos parar. Não se vê a luz no fim do túnel nem o fundo do poço. Sem dúvida que nada disso é novidade por estas bandas, mas ainda assim ficamos com uma sensação de promessa desfeita, de que as coisas não encaixam e as informações são contraditórias, agridem nosso senso comum. Como é possível que o auge da corrupção coexista com uma geral conformidade da população, a ponto do governo haver sido reeleito poucos meses atrás? A corrupção não vinha diminuindo desde o impeachment de Collor? Os últimos governos não têm tido cada vez mais respaldo popular, então não deveriam encampar cada vez mais o desejo geral do povo em acabar com a corrupção? Como é que pode estar tudo andando para trás agora?

Mas todo paradoxo nada mais é do que uma observação incompleta da realidade, que tem como consequência uma divergência entre a realidade observada e o senso comum. A rigor, não há nenhuma contradição, tudo o que está acontecendo é o esperado. O primeiro erro foi acreditar que o fim da corrupção é uma aspiração geral do povo brasileiro. Se fosse assim, esse mesmo povo não reelegeria políticos sabidamente ladrões. O fim da corrupção é uma aspiração da classe média que paga impostos e se sente roubada, mas a classe média é minoritária e não decide eleição. A maior parte do eleitorado, sobretudo nos estados mais pobres, é dispensada de pagar impostos diretos porque não tem renda suficiente, ou porque vive na informalidade (é verdade que pagam os impostos indiretos embutidos no custo das mercadorias, mas como esses não são sentidos, não têm valor didático). Então, esse eleitor não se sente pessoalmente lesado ao saber que seu candidato roubou um dinheiro que não saiu do bolso dele. Vale a regra do Rouba-Mas-Faz que vem do tempo de Adhemar, e bem ou mal, o PT fez coisas que redundaram em benefício dos mais pobres. O povo só não tolera o Rouba-E-Não-Faz, e como o dinheiro acabou, parece-me que já estamos entrando nesse estágio.

O segundo erro do senso comum foi creditar aos partidos de esquerda uma condição moral superior, oposta à corrupção. Este equívoco vem desde o tempo do combate á ditadura: víamos os partidos de esquerda como os porta-vozes dos valores pisados. Mas observando a História a partir de um horizonte mais antigo, anterior à ditadura, vemos que o discurso moralizante sempre foi mais característico dos partidos de direita representantes da classe média pagadora de impostos. Tanto que esse discurso ganhou o apelido de "udenismo" dado pelas esquerdas, referindo-se à UDN, o partido que se opunha ao trabalhismo varguista, notório pelas denúncias de corrupção. O denuncismo da UDN, diziam, era uma estratégia para fomentar um golpe de estado - qualquer semelhança com os dias atuais não e mera coincidência. E a rigor, não há qualquer fundamentação filosófica para crer que os partidos de esquerda sejam inimigos figadais da corrupção, pois o se assim fossem estariam endossando valores burgueses - a proibição de roubar é um tabu originado da inviolabilidade da propriedade privada, princípio que não é reconhecido pela ideologia marxista que embala os partidos de esquerda. A miragem de uma esquerda moralizante foi produto da ingenuidade da classe média que aplaudiu o PT nos estertores do regime militar. Esqueceram-se de que o público das esquerdas nunca foi a classe média, e sim as massas, aquelas mesmas que não pagam impostos e não se incomodam com a corrupção.

Enfim, nada há de contraditório no que estamos vendo. A inocência foi perdida e voltamos às origens.