sábado, 30 de agosto de 2014

O Fenômeno Marina

Um mês atrás, eu nem sabia que Marina Silva era candidata a vice na chapa terceira colocada nas pesquisas. Agora, como todos os brasileiros, estou diante do maior fenômeno eleitoral dos últimos tempos, mais notável ainda por haver sido produto de circunstâncias fortuitas, um acidente de avião, sem nenhuma articulação por trás ou trabalho prévio de marqueteiros. Quanto a mim, não tenho maiores simpatias por Marina, como não tenho pelos outros candidatos, mas como comentarista sinto-me obrigado a pelo menos tentar decifrar o fenômeno.

Como é possível que um candidato com tanto potencial fosse originalmente lançado apenas como vice, em uma chapa sem chance sequer de passar ao segundo turno? Vivo Eduardo Campos, sua candidatura era um cadáver; morto o candidato, sua candidatura ressuscita no corpo de Marina. A explicação que eu encontro é a falta de base partidária de Marina, que tampouco possui base nas massas, em razão de sua falta de carisma. Mais difícil de explicar é de onde vieram tantas intenções de voto para uma candidata tão apagada. Mostram as estatísticas que Dilma perdeu poucos votos para Marina, o que não me espanta: o eleitorado petista, atualmente, é composto por aquela massa que vota no candidato que tem a chave do cofre. Como reza o provérbio, o eleitor tem a memória do burro, sempre se lembra onde come. Essa massa já pertenceu, no passado, à antiga ARENA do regime militar, foi depois herdada pelo PMDB de Sarney e agora é propriedade do PT: muda de partido, mas não muda de endereço, está sempre localizada nos rincões mais pobres e dependentes do favor do governo. Já Aécio Neves perdeu bem mais votos do que Dilma, passando a terceiro lugar, o que evidencia que o eleitorado de Marina é composto em sua maioria por um eleitor descontente com o PT, mas que também não se encantava com Aécio. Esse eleitor desalentado talvez votasse em branco caso não tivesse ocorrido o desastre de avião. A impressão que tenho é que finalmente surgiu um candidato com mínimo apelo popular para confrontar a hegemonia petista.

Mas por que o PSDB não empolgava os anti-petistas?

A explicação se encontra nos próprios fundamentos ideológicos do PSDB, um partido de centro-esquerda que foi obrigado pelas circunstâncias a adotar uma política "neoliberal", que é o nome que a esquerda dá aos cortes, privatizações e medidas de austeridade absolutamente indispensáveis para se tirar qualquer contabilidade do vermelho, seja a de um país ou a do botequim da esquina. O PSDB conspurcou-se com sua fama de neoliberal, enquanto o PT revelou total empatia com as massas, que clamam por um Estado grande e paternal. Por este motivo, o PSDB preferiu renegar o seu passado, desvencilhar-se da imagem de Fernando Henrique Cardoso, paradoxalmente seu líder mais bem -sucedido, e procurou emular o discurso neo-populista do PT. O resultado não poderia ser outro: derrota atrás de derrota. Afinal, quem vai querer a imitação barata se pode ter o original?

E por que Marina empolga os anti-petistas?

Essa é mais difícil de responder. Vejo em Marina uma personagem oca, revestida de um discurso feito de lugares-comuns ambientalistas. Não tem carisma pessoal nem base partidária, passou os últimos anos pulando de galho em galho. É tão oca quanto uma luva, que só espera que alguém coloque-a na mão. E quem será? O PT ou o PSDB? Um hipotético governo de Marina é uma incógnita total, sabe-se apenas que não será fácil, pois os oito anos de Lula deixaram uma pesada conta a ser paga. Esperava-se que Dilma pagasse a conta e deixasse tudo no azul para Lula voltar em 2014, mas isso não aconteceu. Afirma Aécio que o governo de Dilma acabou, mas não é bem assim; o governo de Dilma sequer começou. Então, talvez Marina acabe fazendo o papel que Dilma não fez: ser a "neoliberal" que vai arrumar a casa, arcar com o inevitável ônus de impopularidade e deixar tudo limpo para o retorno triunfal do PT em 2018.

O problema - repito mais uma vez - é que quem pode levar será o PSol, ao invés do PT...

terça-feira, 19 de agosto de 2014

O Caráter do Brasileiro

Não tenho muita afinidade com o povo brasileiro em geral, e não nego que muitas características típicas dos brasileiros incomodam-me. Sobretudo a mania de transformar tais defeitos de caráter em peculiaridades antropológicas – daí a lenda do Brasileiro Cordial; o culto a Macunaíma, o herói sem nenhum caráter; a exaltação da malandragem, do improviso, do jeitinho, do carnaval, do futebol – como se tudo isso fosse um traço identitário nosso. Não posso mudar nada, mas já que a moda é tecer todo um discurso sociológico em torno dessas ditas peculiaridades, então vou entrar também na discussão.

Entre os atributos brasileiros de que não gosto, o que mais me incomoda – e talvez por isso mesmo, seja uma síntese de todos os outros – é um excessivo caráter gregário. Brasileiro gosta de andar sempre em bando, indivíduos introspectivos são mal vistos. As ligações familiares prolongam-se além do núcleo familiar, e persistem pela vida adulta afora, muitos familiares vivendo juntos. As amizades são tão numerosas quanto superficiais. Fala-se sobretudo de um jeito caloroso, afetuoso de ser, que seria típico do brasileiro. É nesse ponto que chegamos ao batido arquétipo do brasileiro cordial, sobre o qual já me referi em outro artigo.
O que há de verdade nisto tudo?

Não me permito discordar, ainda mais que tenho exemplos vivos em toda parte. O que eu discordo mesmo é da crença de que tudo isso tudo seria uma idiossincrasia nossa. A meu ver, esses atributos são herdados. Todo o mundo sabe que esse jeito de ser e de falar, de cumprimentar tocando e beijando, é comum a todos os povos latinos sul-europeus, nossos ancestrais. A insistência em apresentar esses traços culturais como invenção brasileira, a meu ver, revela uma vontade de ver um “algo mais” neles. De minha parte, vejo apenas um excesso de linguagem corporal e jogo de cena, hábito de mentir educadamente. Conforme é sabido, nunca se deve despedir de um inglês dizendo “aparece lá em casa”, ou ele aparecerá mesmo. Nós nos acostumamos a esses estereótipos: os ingleses escondem as emoções que sentem, os latinos mostram as emoções que não sentem. Os ingleses são individualistas, nós somos gregários. Mas já que a proposta é extrair daqui algum significado antropológico profundo, vamos lá: trata-se, a meu ver, da reminiscência de uma organização social pretérita, orientada ao clã familiar. É por este motivo que nós valorizamos mais as ligações afetivas e familiares do que quaisquer outras formas de filiação, inclusive ideológicas e religiosas, conforme explicou Sérgio Buarque de Hollanda, o criador do arquétipo de brasileiro cordial, mas poucos prestaram atenção, haja visto que continuam a interpretar a cordialidade como brandura e mesura. Mas o cordial de Buarque de Hollanda vem da palavra latina para coração, denotando emoção: somos mais emocionais do que racionais, foi isso que ele quis dizer.
Não discordo de Buarque de Hollanda, mas isso colocado dessa forma, como se fosse uma idiossincrasia nacional, uma invenção brasileira, assume ares de mito fundador, o que reveste a ideia de uma aura de dignidade e fornece-lhe um álibi contra todas as críticas: somos assim porque somos brasileiros, e isso sendo uma condição imutável, não nos cabe criticar, mas exaltar, do contrário estaremos exercitando sentimentos neuróticos de auto-rejeição. Ponto. Mas repetindo o que afirmei acima, isso não é uma idiossincrasia brasileira, e tampouco permite tirar uma conclusão que identifique o brasileiro como um povo único e diferente dos demais. No máximo, permite classificar-nos entre os povos atrasados, mais próximos de uma organização social primitiva e orientada ao clã familiar, em detrimento da cidadania. Há muitos outros exemplos de povos do Terceiro Mundo com essas características, o que efetivamente distingue o brasileiro é essa disposição em tecer um discurso sociológico dignificando tais atributos; que eu saiba, em nenhum outro país houve intelectuais que criassem mitos análogos ao do homem cordial, Macunaíma, o malandro, etc. Pode ser que exista, mas eu desconheço. Devíamos é acabar com isso. Aqueles que refutaram o mito do brasileiro cordial apresentando incontáveis episódios de violência em nossa História, isso levados pelo equívoco de tomar cordial por gentil, fizeram-no com toneladas de razão: de fato, para manter a velha organização social orientada ao clã familiar, é imprescindível uma considerável dose de autoritarismo, a fim de reprimir as veleidades individuais e enquadrar todos à força no coletivo tribal. Daí para a violência é um passo.

É sabido que os antigos clãs familiares brasileiros tinham um patriarca. Figura revestida de toda a autoridade, ele comandava esposa, filhos, parentes, agregados, empregados, etc. Esse modelo de família estendida ainda marca nossas relações sociais. Quem está de fora e vê aquele familião, todos interagindo, não raro morando juntos, fica com uma impressão de solidariedade e mútua cooperação. Mas quem está do lado dentro, vê a coisa como realmente é: um mundo onde prevalecem os mais atirados, os mais audazes, quando não os mais descarados, enquanto indivíduos tímidos e escrupulosos são espoliados. Não existe mais a figura do patriarca, mas o autoritarismo que dele emanava ainda está impregnado em nosso tribalismo tardio, e manifesta-se sobretudo no pouco respeito à privacidade alheia, este que é o mais ínfimo dos bens pessoais, e prossegue na perseguição aos “diferentes”, na disposição de fazer uso comum com o que é de outros, em sequestrar o individual para o suposto benefício do coletivo. Seria até uma amostra de altruísmo e entendimento de nossa parte, não fosse esse apreço pelo coletivo tribal paralelo ao mais absoluto desprezo pelo que está fora de tal coletivo. Como bem demonstrou Buarque de Hollanda, a fidelidade brasileira à família e aos amigos impede que ingressemos em formas de organização social superiores, orientadas à cidadania e ao Estado, pautadas na legislação comum e no respeito ao que é privado. Da falta de respeito à privacidade à falta de respeito à propriedade é apenas um passo. Aquele ministro corrupto, no final das contas, pode até ser um bom sujeito: tudo o que ele queria ao fraudar as licitações era beneficiar parentes e amigos donos de empresas, não era isso? Evidente que aquilo que é bom para a curriola dele não é bom para o país, mas é assim que raciocina o homem cordial, e é assim também que muitos de nós raciocinamos.
Em tempos não tão distantes, governava-se o Estado como se governava a família: de forma autoritária, frequentemente violenta. Hoje, são os cacos dessa organização social arcaica que impedem um uso mais proveitoso de nossas relações sociais, desde nosso círculo pessoal, passando pelo profissional até chegar à administração pública. Continuamos a não fazer uma distinção nítida entre público e privado, o que é nosso do que é dos outros, sempre à espera de que algum patriarca surja das cinzas e faça a mediação necessária para estabelecer a boa ordenação. O apreço por líderes políticos carismáticos é apenas um dos aspectos desta questão. Está na cultura popular, isso não vai mudar de uma hora para a outra. Mas bem podíamos começar por parar com a mania de transformar nossos defeitos de caráter em peculiaridades antropológicas.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Dilma, boi de piranha?

Sempre achei a presidente Dilma uma personagem meio patética, desde que veio à luz por obra e graça de seu criador, Luiz Inácio da Silva. Tive até uma certa simpatia por ela, mesclada de pena. Dilma, coitada, não tem carisma. Não é como seu mentor: Lula pode dizer uga-buga-ziriguidum que todos se quedam pasmos ante tanta sabedoria, mas Dilma, com aquela cara de professora de matemática chata de ensino médio, se falar besteira, o pessoal não perdoa.

Desde que foi lançada candidata em 2010, eu tive a convicção de que ela havia sido inventada para fazer um papel de faxineira, cabendo-lhe arrumar as contas que o seu antecessor deixou bagunçadas com a gastança de final de mandato. Durante esses quatro anos, deveria tomar as medidas de austeridade necessárias e arcar com o inevitável ônus de impopularidade e desgaste com a base aliada, a fim de deixar tudo em cima para Lula retornar em 2014, em clima de Copa do Mundo e Olimpíada. Como se sabe, as coisas não saíram como previsto, e Dilma virou um abacaxi. É evidente que seu governo foi um dos mais medíocres da história da república, mas se ela pouco pode apresentar de seu na presente campanha, por outro lado, seu partido ainda conta com respeitável capital eleitoral acumulado nos oito anos bem sucedidos de Lula. Mas por que ele ainda conta com a faxineira?

Atualmente, minha convicção é que o novo papel que coube a Dilma Rousseff é ser boi de piranha do PT. Lula não quis ser candidato - se ele fosse, não tenho dúvidas de que levaria, mas o problema é que os ventos favoráveis de seu primeiro mandato não existem mais, e um novo mandato destruiria a imagem que ele criou. Lula prefere preservar-se, outros petistas também, então Dilma serve como boi-de-piranha: se perder, sem problema, ela já está queimada mesmo; se vencer, quem vai se queimar nos próximos quatro anos é ela, ao enfrentar a recessão que vem por aí, inevitável rescaldo dos erros na política econômica da era petista. Para o PT, o melhor é tirar o time de campo e esperar tempos melhores. Deixar a rebordosa para um "neoliberal" consertar, arcar com o ônus da impopularidade, e depois, com a casa arrumada, voltar com tudo para fazer novo bonitão.

O problema é que daqui a uns anos, o próximo bonitão poder não ser do PT, mas do PSol...